29.10.08

Suor escorre-me pela fronte. Uma buzina de um automóvel produz sibilos ténues, longínquos aos meus ouvidos; contrabalançam uma dor lancinante no peito. Acordo com o estalar do esterno, a bigorna, essa, é real.
Lá fora tudo parece calmo. O negrume do quarto balança-se calmamente ao sabor da luz que provém do exterior por entre os orifícios dos estores, como pequenos olhos que me observam do exterior. Embatem na minha cara e obrigam-me a virar-lhes a face, por vergonha. Fecho-me e tento embalar ao ritmo do meu coração, bate rápido demais para que consiga voltar a adormecer. Eu que tanto necessito de descanso, de desprendimento. Soçobro.

Outra urgência e sinto-me rebentar. Abro os olhos não para ver, mas na leve esperança de poder de alguma forma aliviar a pressão que se acumula, criar uma válvula de escape. Enfrento o que me vai habitando à medida que tudo vai ficando cada vez mais nítido; aqueles olhos que me julgam outra vez. Mexo-me sem pensar por entre os lençóis, até o seu roçagar me provoca arrepios. Sinto-me culpado quando estes chegam ao topo e me acariciam a nuca. Devia estar destituído de tudo, mais ainda do leve prazer que algumas coisas, inadvertidamente, podem provocar. Não o controlo, é um facto, mas estes não devem, não deveriam existir. Tenho vontade de abocanhar o tecido, rasgá-lo por entre os caninos e fazê-lo pagar pelo que me dá sem ter pedido. Fazê-lo jorrar fibras de algodão pela sua ignomínia e destituí-lo de qualquer forma, deixando-o irreconhecível, entregar-lhe a sua punição. Comprimo os maxilares em torno da bainha e quero muito fazer força, mas esta abandonou-me há mais de uma semana, creio. Não sinto os dentes, apenas corre algo por entre os sulcos da minha face, que prontamente abafo no regaço de uma qualquer almofada crispada entre mãos.
Sossego e viro-me outra vez, olhando para baixo segundo a linha do que julgo ser o meu corpo. Vejo uma massa disforme. esbranquiçada, com pêlos e reentrâncias, com vida própria, mexendo-se para seu próprio deleite. Sinto-me enojado com o que vejo, mas não consigo tirar os olhos desta existência, como se tivesse fatalmente atraído por ela. O braço distende-se e solta-se da amarra do lençol, flecte ao nível do cotovelo e debruça-se sobre mim, deitando uma mão à cara que a contempla, filtrando a luz por entre os seus dedos esguios e cheios de vida. Massajo a face de forma a combater o torpor que me invade, esta inanição que me consome mas ao mesmo tempo faz tão parte de mim, é-me tão intrínseca. O corpo que me coube resvala para o espelho, aquela clarabóia que tão nitidamente domina este quarto, a minha jaula.

Assusto-me. Sempre pensei que este seria muito diferente do que agora percepciono. Ocorreu-me há dias que podeia muito bem ser um Samsa metamorfoseado, daí o meu medo em revolver-me de encontro a este vidro polido que tão prontamente devolve tudo o que lhe é submetido, sem sequer pensar, moldar, aquilo que lhe vai chegando.
Sinto-me aturdido por esta verdade, mas algo desponta. São antenas, olhos, probóscides que me vêm socorrer, que me transfiguram e me tornam naquilo que realmente sempre achei que era. Sinto-me muito mais sossegado agora. O coração para de bater e adormeço, apoplético.

Longa já me parece a noite quando volto a um estado consciente. Nada vejo. Está escuro, demasiado escuro, mas não me atrevo a senti-lo outra vez a distender-se para acender a luz do candeeiro colocado aqui tão perto, mesmo à cabeceira da cama.
Deixo-me ficar a ouvir a doce melodia do vácuo que me rodeia, um grande buraco negro que se projecta no tecto e me chama de uma maneira tão convincente. Não fora a minha total ausência de vontade, e prontamente me entregaria a esse abraço reconfortante. O meu peito dispara e sinto-me arfar, suo desalmadamente mas nem um uivo consigo emitir, ganir, o que seja. Sinto-me um animal e no entanto nem sequer consigo arquear as minhas costas de forma a emitir o som mais gutural que conheço, que sinto a gorgolejar em mim. Abro a boca em desespero e tento sorver todo o ar que ainda posso, quero parar esta ansiedade que me rasga o peito, mas o negrume vem e tapa-me a boca com a sua pesada mão, dizendo-me para sossegar, tudo correrá bem.

Disse que era um animal, mas não o sou. A verdade é que os sinto apenas dentro de mim, como se tivessem vida própria. Digo mais, o que eu realmente sinto é este ardor, este animismo, como se existissem predadores trucidando presas dentro de mim, e eu nada pudesse fazer contra isso. Poder posso, mas não quero. E mesmo que quisesse, já me defini como impotente, não quero saber, sou negligente, viro costas à carnificina.

(tudo tem um início)

1 comentário:

k. disse...

ainda ontem a minha irmã me mandou este teu texto (que tinha ficado no pc dela), e tive a relê-lo (: *
miss u i