21.12.07

Houve dias, frequentes dias, em que acordava a sentir-me cirurgião.
Não que alguma vez almejasse vir a exercer tal profissão, mas no meu pleno direito, classificava-me como tal. Num determinado momento da minha vivência, algo subsistiu em mim, não obstante todas as metamorfoses porque tinha passado, virando-me totalmente para o lado da lógica, da razão (se é que algo se coaduna com esta "classificação") e, imbuído por essa nova demagogia, submetia a escrutínio tudo com que me deparava. Absolutamente tudo.

Sobretudo as pessoas. Daí a cirurgia.

Bem, pensando melhor, acho que o grau de cirurgião é demasiado pomposo para a aplicação que lhe dou; talvez seja presunção a mais da minha parte, admito. Isto porque o acto de dissecar era em mim tão natural e frio, tão irreflectido e parassimpático que me assemelhava mais a um talhante. Noto: talhante, não carniceiro.
Desde que me lembro, sempre fui o mais prático e pragmático dos gestaltistas: nada conseguia ser um todo, tomava-o como o conjunto das partes que, reconheço agora, nunca representavam o uno; decompunha-as, reduzindo-as a um estado ao qual faltava sempre algo.
Objectivamente, a dissecação de sujeitos acarreta sangue, e no plano fisiológico em que os inseria, este era-me de todo invisível até ao fim da análise dos membros e órgãos removidos. Pior: a grande maioria das vezes em que exercia este meu ignóbil direito nem dava conta da falta do que quer que fosse.
As pessoas, tal como os objectos, eram apenas aquilo que encontrava estendido sem vida na marquesa, esses sim incompletos.
Reconheço agora que a minha análise era de todo falaciosa. Isto porque não estudava o aspecto mais demarcado e fulcral: a simbiose das partes.
Afinal, recolhido na minha carapaça de objectiva frieza e indiferença (dita superior, um aforismo) intelectual, não era mais do que um mero iconoclasta.

Um reles iconoclasta.

Porém, nem tudo esteve perdido. À medida que cravava o escopro nas carnes e ideias, cinzelando inanições desprovidas de sentido, por vezes encontrava beleza. Não tanto no que ainda faltava fragmentar, mas nos próprios fragmentos que caíam no chão. É que, como se constata facilmente, nem tudo é feito de mármore impassível, e quer imediatamente abaixo da superfície quer bem no âmago existem rochas vítreas bem negras; como também subsistem as mais preciosas gemas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ficas tanto tempo sem escreveres qualquer coisa no teu blog, mas quando escreves... Bem, e' o que te digo, cada vez mais gosto de "te" ler.
Saudades tuas!
Beijinhooo *